Prefácio

A criação deste blog deve-se, primeiro, ao Dictionnaire des idées reçues, de Gustave Flaubert, escrito como parte do incompleto Bouvard et Pécuchet, e, segundo, ao Dicionário das ideias feitas em educação, organizado por Sandra Mara Corazza (professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e Julio Groppa Aquino (professor da Universidade de São Paulo), a partir da ideia lançada por Flaubert. Diferentemente dessas duas inspirações, este blog não tem a estrutura alfabética de um dicionário, e nem de perto a mesma sutileza; mas é guiado pela atualidade mundana do futebol. Ainda que as duas inspirações também partam da mundanidade, atingem verdades superiores. Já este blog busca, tão somente, apropriar-se das ideias já prontas para dar-lhes um novo sentido ou uma nova explicação.

As ideias feitas do futebol (entendidas como lugares-comuns, clichês e/ou chavões usados, sobretudo, pela crônica esportiva) constituem a matéria deste blog; matéria essa constituída por ideias que, apesar de terem sido inventadas, parece que se esqueceram disso, e, justamente por essa razão, apresentam-se como verdades fáceis, incapazes de provocarem o pensamento.

As ideias feitas não tangem a consistência deste blog; mas a matéria. Isso significa que elas se constituem nos pontos de partidas de cada seção (por isso, cada seção tem como título a própria ideia feita). E isso também significa que não se trata de negar as ideias vindas do senso comum (sobretudo, da crônica esportiva), mas de lidar com elas; fazê-las variar, já que, por hábito, os envolvidos preferem conservá-las.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Quanto mais gols melhor o jogo!

Não se trata de dizer que tal ideia feita seja falsa, mas de dizer que o número de gols, por si só, não é capaz de garantir um grande jogo. De quebra, pretendo mostrar que a ideia feita, apesar de assim aparentar, não é óbvia.

O que realmente me incomoda é a mania de se classificar um jogo como “jogaço” a partir apenas de seu placar elevado (3 a 3, 4 a 3, 4 a 4, 5 a 4 etc.). Tal ideia feita se sobrepõe ao fato de um jogo ter sido, realmente, um grande jogo. Assim como um 0 a 0 pode ter sido bom, um 3 a 3 pode ter sido, facilmente, fraco, sobretudo, no aspecto técnico e tático.

Mais uma vez: não quero afirmar que um jogo de placar elevado seja ruim, mas apenas que não é, necessariamente, bom. Se fosse verdade que um jogo de placar elevado é sempre de qualidade, estaríamos pressupondo que o sistema defensivo de um time não tem a mínima importância; que somente o que ele pode fazer é atrapalhar o grande jogo. Estaríamos pensando assim: “se o jogo não foi bom, foi porque a defesa soube atrapalhá-lo”. Seguindo ainda o mesmo raciocínio, poderíamos dizer que a falha de um goleiro é altamente positiva para uma partida de futebol, visto que tal falha contribui diretamente para o aumento do placar.

Do mesmo modo que a seguinte afirmação é problemática: “quanto mais gols melhor o jogo”, esta outra também o é: “ambos os times foram incompetentes e permaneceram no 0 a 0”. Até pode ser que este ou aquele 0 a 0 se deva à incompetência dos times, porém, isso não pode ser concluído apenas a partir da observação do placar final. A ideia feita é problemática justamente por isto: ela substitui a análise dos casos. O placar surge como um motivador imediato de um axioma reativo:
O jogo terminou 5 a 4! [Ação]
Mesmo? Que “jogão”! [Reação (submetida à ação)]

Há quem diga que tal ideia feita se justifica pelo fato de que o futebol não teria a menor graça e o menor sentido se não houvesse o gol. Concordo! Mas em relativização a isso, afirmo que um dos grandes “segredos” do futebol tange o fato de o gol ser um acontecimento raro. Ou seja, é verdade que o sentido do futebol passa pelo gol, porém, não é verdade que o sucesso desse esporte passa pela quantidade de gols. Aqueles que frequentam estádios de futebol, e experimentam a emoção de uma goleada, sabem que, na medida em que acontece mais um gol, a euforia da torcida diminui; e, no íntimo, sabem que a cada falha do adversário a valorização da vitória é, igualmente, cada vez menor. Entretanto, ainda assim é possível argumentar que isso não acontece nos casos em que o placar, apesar de alto, segue equilibrado (numa situação de 4 a 3, por exemplo). Em matéria de euforia da torcida, isso é inquestionável; mas não em matéria de avaliação do jogo, mesmo porque a euforia diz respeito apenas a uma torcida em específico, justamente aquela que a sua preocupação não é avaliativa e apreciativa, mas exclusivamente comemorativa. A avaliação do jogo, enfim, precisa ser imanente, o que quer dizer que é a própria experiência de vivenciar o jogo que deveria fundamentar o grau de qualidade deste.

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