Prefácio

A criação deste blog deve-se, primeiro, ao Dictionnaire des idées reçues, de Gustave Flaubert, escrito como parte do incompleto Bouvard et Pécuchet, e, segundo, ao Dicionário das ideias feitas em educação, organizado por Sandra Mara Corazza (professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e Julio Groppa Aquino (professor da Universidade de São Paulo), a partir da ideia lançada por Flaubert. Diferentemente dessas duas inspirações, este blog não tem a estrutura alfabética de um dicionário, e nem de perto a mesma sutileza; mas é guiado pela atualidade mundana do futebol. Ainda que as duas inspirações também partam da mundanidade, atingem verdades superiores. Já este blog busca, tão somente, apropriar-se das ideias já prontas para dar-lhes um novo sentido ou uma nova explicação.

As ideias feitas do futebol (entendidas como lugares-comuns, clichês e/ou chavões usados, sobretudo, pela crônica esportiva) constituem a matéria deste blog; matéria essa constituída por ideias que, apesar de terem sido inventadas, parece que se esqueceram disso, e, justamente por essa razão, apresentam-se como verdades fáceis, incapazes de provocarem o pensamento.

As ideias feitas não tangem a consistência deste blog; mas a matéria. Isso significa que elas se constituem nos pontos de partidas de cada seção (por isso, cada seção tem como título a própria ideia feita). E isso também significa que não se trata de negar as ideias vindas do senso comum (sobretudo, da crônica esportiva), mas de lidar com elas; fazê-las variar, já que, por hábito, os envolvidos preferem conservá-las.

domingo, 25 de setembro de 2011

O Maracanã é o templo do futebol brasileiro!

Não se trata de dizer que sim e nem que não; trata-se antes de um estranhamento: “por quê?”.

Alguns estádios privados, tais como o Beira Rio e o Morumbi, receberam mais finais de Taça Libertadores da América do que o próprio Maracanã (e há certa unanimidade em relação à opinião de que esse é o principal título a ser disputado neste continente). Copa do Mundo? De fato, foi o Maracanã que sediou a grande final da Copa realizada no Brasil; porém, difícil transformar um local em templo em função de uma derrota (Brasil 01 X 02 Uruguai). Campeonatos Brasileiros? Copas do Brasil? Basta fazer as contas para saber que não há nenhuma estatística capaz de delegar a esse estádio um status especial.

Eis aí uma ideia cansada! De tão cansada contagia os ouvintes. A impressão é a de que, para argumentar no sentido contrário, é preciso um empreendimento custoso...

O Maracanã é, e isso não resta qualquer dúvida, o “templo do futebol carioca”, mas não brasileiro. Existe o hábito de se considerar as coisas do Rio de Janeiro como sendo “nacionais”. Uma orquestra sinfônica da Bahia é a “Orquestra Sinfônica da Bahia”; mas uma orquestra do Rio de Janeiro é a “Orquestra Sinfônica Brasileira”. Uma música produzida no Rio Grande do Sul é “regionalista”; mas uma música produzida no Rio de Janeiro é “Música Popular Brasileira” etc. E esse hábito rasteiro acaba valendo para o futebol!

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Corinthians e Flamengo devem receber mais da TV porque têm maiores torcidas!

Sem dúvida, quanto mais jogos desses clubes forem transmitidos, ainda maiores serão as suas torcidas! Nesse sentido, parece-me que nada mais lógico do que, quanto mais um clube for exibido na TV, menos deve receber, e não o contrário; afinal, quanto maior a exposição, maior é a difusão da marca.

Do modo como está ocorrendo hoje, os dois clubes em questão estão sendo beneficiados duas vezes: ganham mais dinheiro e, de quebra, divulgam mais as suas marcas! No momento em que Corinthians e Flamengo esboçam a seguinte reclamação: “a TV transmite mais jogos dos nossos times do que de outros, logo, devemos receber mais!”, a resposta da TV deveria ser (e, quando consideramos o modo como ocorre uma negociação entre uma parte que tem outras opções de “clientes” e outra que tem apenas uma alternativa, isso parece lógico): “certo, então, transmitiremos menos jogos de vocês!”. Corinthians e Flamengo voltariam atrás e se resignariam; afinal, se as perdas da televisão poderiam ser contornadas num médio prazo, as perdas dos dois clubes seriam definitivas.

O interesse da TV não é tão grande quanto o do clube, visto que aquela tem sempre a opção de transmitir uma partida envolvendo outros times, enquanto que este necessita dessa verba para conservar “as suas portas abertas”; ou seja, a sua necessidade é de primeira ordem.

Ainda que esses clubes pudessem procurar outros canais de TV, não o fariam, pois não abandonariam a Rede Globo, sob o risco de perder poder de penetração. É preciso considerar que se Corinthians e Flamengo possuem as duas maiores torcidas, não é em função da chamada “torcida ativa”, mas é em função de contarem com torcedores em quase todas as regiões do país; devido, justamente, ao poder de penetração que meios de comunicação lhe possibilitaram e que a Rede Globo e seus demais canais hoje lhes possibilitam.

Difícil de entender o porquê de a TV não usar esse tipo de negociação, até porque ninguém duvida de sua habilidade empreendedora.

Por fim, não tenho dúvida de que se a TV passasse a transmitir as partidas de outro clube na mesma quantidade e intensidade que hoje transmite as de Corinthians e Flamengo, tal clube passaria a contar, em longo prazo, com torcida equivalente a desses. Critérios como paixão, história, títulos e estrutura, são cumpridos por pelo menos outros dez clubes do país. Nesse sentido, o fator definitivo para a diferença que há, entre a quantidade de torcedores desses clubes e a dos demais, tange a exposição de suas marcas (refiro-me não ao trabalho de marketing, realizado pelos próprios clubes, mas ao serviço prestado pelos meios de comunicação).

(Não estou a propor uma diminuição da verba da TV; mas um novo modo de distribuir essa mesma verba. A TV seguiria investindo tanto quanto agora; afinal, o seu investimento é justo (ou próximo disso). A questão problemática diz respeito ao fato de que, justamente, aqueles clubes que mais se beneficiam com a exposição de suas marcas, são os mesmos que mais recebem do "bolo da televisão". O raciocínio deveria ser este: a TV compra o Campeonato Brasileiro (independentemente dos clubes – e aí a importância de uma entidade representativa), e os clubes fazem a distribuição de acordo com o critério da “menor exposição”. Isso significa que a verba recebida por um clube é inversamente proporcional ao número de jogos seus transmitidos em canal aberto (o sistema Pay Per View fica fora dessa questão, pois transmite todos os jogos de todos os clubes). Não se trata de uma proposta que tenha o intuito de fazer com que a disputa fique mais justa; não se trata de uma intervenção que vise a igualdade entre os clubes. Trata-se, isto sim, de um raciocínio que se insere na própria lógica mercadológica em que vivemos: aquele que expõe a sua marca não é aquele que recebe por isso, mas, ao contrário, aquele que paga! Neste caso, evidentemente, paga não para a TV, mas paga não recebendo tanto (da entidade dos clubes) quanto o clube menos exposto.)

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Vencemos graças a Deus!

Eis uma contradição: no discurso religioso cristão, prega-se a fraternidade; porém, a partir do momento em que um jogador de futebol (supostamente, amarrado ao discurso corrente) diz que venceu “graças a Deus”, está, ao mesmo tempo, afirmando que a derrota do adversário também aconteceu “graças a Deus”; afinal, se houve um vencedor é por que houve, na mesma situação, um perdedor. Diante disso, pode-se concluir que, se Deus contribuiu na vitória, é porque, do outro lado, deixou de contribuir ou agiu negativamente.

(Uma maneira recorrente de fugir dessa contradição, é a estratégia de lançar mão de uma ideia (feita) vinda do mais chato dos sensos comuns, a auto-ajuda: “o que vale é competir, todos somos vitoriosos!”. Ainda assim, tal estratégia não tem sentido e coerência no contexto em que o jogador de futebol faz uso da expressão “graças a Deus”, afinal, sabe-se que essa expressão é usada, precisamente, ao final de uma partida em que o clube, que esse jogador representa, sai vitorioso e deixa como rastro alguns indivíduos com o rótulo de “derrotados”!)

A contradição fica ainda mais complicada se se levar em consideração que, segundo o mesmo discurso religioso, Deus é essencialmente Bom; ou seja, independentemente da situação, Deus é sempre Bom. Como pode Deus fazer o Bem para um clube de futebol se esse Bem implica, no mesmo gole, o Mal para outras pessoas?

Ainda que se diga que esses argumentos não estão considerando que uma derrota não, necessariamente, é Má, ou que se está entendendo o “Bem” e o “Mal” num sentido moral, isso somente acontece em função da ideia feita em questão (“vencemos graças a Deus!”) ser proferida apenas em situações que, tradicionalmente, são reconhecidas como Boas (em situações que a derrota é sim considerada algo indesejável); ou seja, essa ideia feita é encontrada no registro do moralismo e, justamente por isso, é tomada nesse registro.

Vejam bem, o problema levantado nesta seção não está, como pode parecer aos moralistas, no fato da comemoração de alguns implicar no desgosto de outros. O problema está no fato de haver contradição no âmago da ideia feita. Pois não é este texto que afirma que Deus é sempre Bom, mas é o jogador que, ao mesmo tempo em que se alia ao discurso do “essencialmente Bom” e da “fraternidade”, agradece "aos céus" por estar acontecendo algo a outros indivíduos; um algo que ele mesmo reconhece como sendo da ordem das coisas que “não desejamos para ninguém”: a dor, o sofrimento, o desgosto etc.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

O Grêmio é imortal!

Argumento 01: ouvi falar de um ritual de certa tribo indígena no qual os homens colocam máscaras e correm atrás das mulheres como se fossem monstros. E que, segundo ouvi argumentar, as mulheres dessa tribo, apesar de, conscientemente, saberem que se trata não de monstros, mas dos seus próprios homens, ainda assim fogem horrorizadas de medo. Isso porque elas não fingem medo; elas sentem medo “de verdade”.

Também poderia usar o exemplo do “homem bomba” e até do católico que, apesar de reconhecer todo o conhecimento científico, ainda assim busca não anunciar o seu ateísmo para não colocar em risco a sua “entrada no céu”.

Não tenho dúvida de que, racionalmente, todo torcedor do Grêmio sabe que o seu clube não tem nenhum grande feito que não possa ser equiparado aos (ou mesmo superado pelos) feitos de outros grandes clubes. Porém, esse aspecto racional pouco importa, pois o que “fala mais alto” é o efeito de acreditar na própria mentira (por isso as mulheres daquela tribo correm, mesmo que, conscientemente, saibam que se trata de seus próprios homens) e não o grau de veracidade do acontecimento. Excetuando o efeito, todos os torcedores dos grandes clubes (e não apenas do Grêmio) sabem que todos os grandes clubes são imortais: afinal, alguém já viu um clube “fechar as portas”, “dar um tempo” ou “jogar a toalha” apenas por ter sido rebaixado ou por ter vivido um mau momento?

Argumento 02: nossa sociedade, sobretudo ocidental, acredita fielmente na ideia de autoria. Para mantê-la viva, respeita-a. A questão toda é que foi o Grêmio quem trouxe essa ideia para o futebol. Quero dizer que se o Grêmio é “o imortal” não é porque de fato o seja (em especial), mas é porque foi ele quem inventou o slogan.

Argumento 03 (abalizado na ideia feita da seção anterior): o que é um feito maior? O Corinthians ou o Vasco vencer a Séria B do Campeonato Brasileiro se impondo com naturalidade sobre os seus adversários, ou o Grêmio vencer o mesmo campeonato duelando “de igual para igual” com clubes de menor expressão? Racionalmente, não há a menor dúvida de que o primeiro caso é um feito maior e, claramente, preferível; porém, como “ganhar com raça” é sempre interessante por lançar o motivo da vitória para a transcendência, publicamente parece que é o segundo que vala mais a pena (conforme dito na seção anterior, a raça é anunciada apenas em “vitórias apertadas”). Há, nisso, uma clara confusão entre a ideia de “grande feito” e a de “ganhar com a calça na mão”.

Argumento 04: diante de seguidos fracassos, a difusão da ideia de imortalidade é uma interessante estratégia de positivação dos maus momentos. Em termos comunicacionais é genial. O que fazer diante de derrota tão dolorosa? Ora, supervalorizar a “volta por cima” (ora, como se não fosse corriqueiro o fato de todos os grandes clubes, diante de seus maus momentos, “darem a volta por cima”!).