Prefácio

A criação deste blog deve-se, primeiro, ao Dictionnaire des idées reçues, de Gustave Flaubert, escrito como parte do incompleto Bouvard et Pécuchet, e, segundo, ao Dicionário das ideias feitas em educação, organizado por Sandra Mara Corazza (professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e Julio Groppa Aquino (professor da Universidade de São Paulo), a partir da ideia lançada por Flaubert. Diferentemente dessas duas inspirações, este blog não tem a estrutura alfabética de um dicionário, e nem de perto a mesma sutileza; mas é guiado pela atualidade mundana do futebol. Ainda que as duas inspirações também partam da mundanidade, atingem verdades superiores. Já este blog busca, tão somente, apropriar-se das ideias já prontas para dar-lhes um novo sentido ou uma nova explicação.

As ideias feitas do futebol (entendidas como lugares-comuns, clichês e/ou chavões usados, sobretudo, pela crônica esportiva) constituem a matéria deste blog; matéria essa constituída por ideias que, apesar de terem sido inventadas, parece que se esqueceram disso, e, justamente por essa razão, apresentam-se como verdades fáceis, incapazes de provocarem o pensamento.

As ideias feitas não tangem a consistência deste blog; mas a matéria. Isso significa que elas se constituem nos pontos de partidas de cada seção (por isso, cada seção tem como título a própria ideia feita). E isso também significa que não se trata de negar as ideias vindas do senso comum (sobretudo, da crônica esportiva), mas de lidar com elas; fazê-las variar, já que, por hábito, os envolvidos preferem conservá-las.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Vencemos graças a Deus!

Eis uma contradição: no discurso religioso cristão, prega-se a fraternidade; porém, a partir do momento em que um jogador de futebol (supostamente, amarrado ao discurso corrente) diz que venceu “graças a Deus”, está, ao mesmo tempo, afirmando que a derrota do adversário também aconteceu “graças a Deus”; afinal, se houve um vencedor é por que houve, na mesma situação, um perdedor. Diante disso, pode-se concluir que, se Deus contribuiu na vitória, é porque, do outro lado, deixou de contribuir ou agiu negativamente.

(Uma maneira recorrente de fugir dessa contradição, é a estratégia de lançar mão de uma ideia (feita) vinda do mais chato dos sensos comuns, a auto-ajuda: “o que vale é competir, todos somos vitoriosos!”. Ainda assim, tal estratégia não tem sentido e coerência no contexto em que o jogador de futebol faz uso da expressão “graças a Deus”, afinal, sabe-se que essa expressão é usada, precisamente, ao final de uma partida em que o clube, que esse jogador representa, sai vitorioso e deixa como rastro alguns indivíduos com o rótulo de “derrotados”!)

A contradição fica ainda mais complicada se se levar em consideração que, segundo o mesmo discurso religioso, Deus é essencialmente Bom; ou seja, independentemente da situação, Deus é sempre Bom. Como pode Deus fazer o Bem para um clube de futebol se esse Bem implica, no mesmo gole, o Mal para outras pessoas?

Ainda que se diga que esses argumentos não estão considerando que uma derrota não, necessariamente, é Má, ou que se está entendendo o “Bem” e o “Mal” num sentido moral, isso somente acontece em função da ideia feita em questão (“vencemos graças a Deus!”) ser proferida apenas em situações que, tradicionalmente, são reconhecidas como Boas (em situações que a derrota é sim considerada algo indesejável); ou seja, essa ideia feita é encontrada no registro do moralismo e, justamente por isso, é tomada nesse registro.

Vejam bem, o problema levantado nesta seção não está, como pode parecer aos moralistas, no fato da comemoração de alguns implicar no desgosto de outros. O problema está no fato de haver contradição no âmago da ideia feita. Pois não é este texto que afirma que Deus é sempre Bom, mas é o jogador que, ao mesmo tempo em que se alia ao discurso do “essencialmente Bom” e da “fraternidade”, agradece "aos céus" por estar acontecendo algo a outros indivíduos; um algo que ele mesmo reconhece como sendo da ordem das coisas que “não desejamos para ninguém”: a dor, o sofrimento, o desgosto etc.

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