Prefácio

A criação deste blog deve-se, primeiro, ao Dictionnaire des idées reçues, de Gustave Flaubert, escrito como parte do incompleto Bouvard et Pécuchet, e, segundo, ao Dicionário das ideias feitas em educação, organizado por Sandra Mara Corazza (professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e Julio Groppa Aquino (professor da Universidade de São Paulo), a partir da ideia lançada por Flaubert. Diferentemente dessas duas inspirações, este blog não tem a estrutura alfabética de um dicionário, e nem de perto a mesma sutileza; mas é guiado pela atualidade mundana do futebol. Ainda que as duas inspirações também partam da mundanidade, atingem verdades superiores. Já este blog busca, tão somente, apropriar-se das ideias já prontas para dar-lhes um novo sentido ou uma nova explicação.

As ideias feitas do futebol (entendidas como lugares-comuns, clichês e/ou chavões usados, sobretudo, pela crônica esportiva) constituem a matéria deste blog; matéria essa constituída por ideias que, apesar de terem sido inventadas, parece que se esqueceram disso, e, justamente por essa razão, apresentam-se como verdades fáceis, incapazes de provocarem o pensamento.

As ideias feitas não tangem a consistência deste blog; mas a matéria. Isso significa que elas se constituem nos pontos de partidas de cada seção (por isso, cada seção tem como título a própria ideia feita). E isso também significa que não se trata de negar as ideias vindas do senso comum (sobretudo, da crônica esportiva), mas de lidar com elas; fazê-las variar, já que, por hábito, os envolvidos preferem conservá-las.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

O Grêmio é imortal!

Argumento 01: ouvi falar de um ritual de certa tribo indígena no qual os homens colocam máscaras e correm atrás das mulheres como se fossem monstros. E que, segundo ouvi argumentar, as mulheres dessa tribo, apesar de, conscientemente, saberem que se trata não de monstros, mas dos seus próprios homens, ainda assim fogem horrorizadas de medo. Isso porque elas não fingem medo; elas sentem medo “de verdade”.

Também poderia usar o exemplo do “homem bomba” e até do católico que, apesar de reconhecer todo o conhecimento científico, ainda assim busca não anunciar o seu ateísmo para não colocar em risco a sua “entrada no céu”.

Não tenho dúvida de que, racionalmente, todo torcedor do Grêmio sabe que o seu clube não tem nenhum grande feito que não possa ser equiparado aos (ou mesmo superado pelos) feitos de outros grandes clubes. Porém, esse aspecto racional pouco importa, pois o que “fala mais alto” é o efeito de acreditar na própria mentira (por isso as mulheres daquela tribo correm, mesmo que, conscientemente, saibam que se trata de seus próprios homens) e não o grau de veracidade do acontecimento. Excetuando o efeito, todos os torcedores dos grandes clubes (e não apenas do Grêmio) sabem que todos os grandes clubes são imortais: afinal, alguém já viu um clube “fechar as portas”, “dar um tempo” ou “jogar a toalha” apenas por ter sido rebaixado ou por ter vivido um mau momento?

Argumento 02: nossa sociedade, sobretudo ocidental, acredita fielmente na ideia de autoria. Para mantê-la viva, respeita-a. A questão toda é que foi o Grêmio quem trouxe essa ideia para o futebol. Quero dizer que se o Grêmio é “o imortal” não é porque de fato o seja (em especial), mas é porque foi ele quem inventou o slogan.

Argumento 03 (abalizado na ideia feita da seção anterior): o que é um feito maior? O Corinthians ou o Vasco vencer a Séria B do Campeonato Brasileiro se impondo com naturalidade sobre os seus adversários, ou o Grêmio vencer o mesmo campeonato duelando “de igual para igual” com clubes de menor expressão? Racionalmente, não há a menor dúvida de que o primeiro caso é um feito maior e, claramente, preferível; porém, como “ganhar com raça” é sempre interessante por lançar o motivo da vitória para a transcendência, publicamente parece que é o segundo que vala mais a pena (conforme dito na seção anterior, a raça é anunciada apenas em “vitórias apertadas”). Há, nisso, uma clara confusão entre a ideia de “grande feito” e a de “ganhar com a calça na mão”.

Argumento 04: diante de seguidos fracassos, a difusão da ideia de imortalidade é uma interessante estratégia de positivação dos maus momentos. Em termos comunicacionais é genial. O que fazer diante de derrota tão dolorosa? Ora, supervalorizar a “volta por cima” (ora, como se não fosse corriqueiro o fato de todos os grandes clubes, diante de seus maus momentos, “darem a volta por cima”!).

Um comentário:

  1. Dizer que o Grêmio é imortal equivale a dizer que o Grêmio não é igual à Portuguesa, é superior. Apenas isso. Dar valor ao fato de cair pra Série B e voltar pra Série A é o mesmo que dar valor ao fato de nunca ter caído pra Série B. Por isso, o Grêmio não é igual à Portuguesa assim como o Inter não é igual ao Grêmio.

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